O Pai da Independência Afrikana e o Garveyismo

Akínwálé Òkòtó
7 min readApr 23, 2024

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Marcus Garvey & Kwame Nkrumah

Kwame Nkrumah passou 10 anos nos estados unidos e lá realizou grande parte da sua formação intelectual e política, partindo, porém, de uma base recebida ainda no Continente Afrikano, por seus mentores, dentre os quais destacou o nacionalista pan-afrikano James Emman Kwegyir Aggrey, nascido na então costa do ouro, conforme denominação estabelecida por colonizadores europeus, em alinhamento com seus propósitos bélico-comerciais de natureza genocida, escravista e extrativista.

James E. Kwegyir Aggrey teve influência na decisão de Kwame Nkrumah de seguir seus estudos nos estados unidos da américa. Em seu primeiro livro, Consciencismo, Kwame Nkrumah revela um tanto dos fatores que pesaram de modo particular nesta encruzilhada. Naquele momento, Nkrumah buscava afastar-se de uma formação superior idealizada pelos senhore(a)s da partilha de Áfrika com o objetivo de criar uma elite intelectual negra, futura gestora dos interesses coloniais dos povos brancos em Áfrika, no quadro da continuidade do colonialismo por intermédio de agentes pretos, Afrikanos.

Nkrumah não era ingênuo e sabia que os programas e currículos que encontraria em universidades estadunidenses não seria lá tão diferentes dos programas e currículos de universidades europeias. Sabia também que lá também haveria muitos estudantes deslumbrados e iludidos de pele preta. Pesava, porém, em favor das instituições norte-americanas não apenas o fato de o governo estadunidense estar menos implicado à época, diretamente, na gestão e preservação dos regimes coloniais em Áfrika do que governos europeus como os da Inglaterra e da França, por exemplo — destinações primeiras para formação de Afrikanos, escolhidos a dedo, dizia Nkrumah, em função de seu grau de afastamento ou até mesmo abandono em relação à própria cultura, sendo assim mais suscetíveis a se deixarem seduzir por culturas helênicas e romanas, cultuadas na academia. Teve ainda importância crítica na sua decisão a força dos movimentos internacionais de libertação e unidade pretas, que surgiam em solo estadunidense, especialmente, as organizações pan-afrikanistas. E nesse ponto em particular, James Kwegyir Aggrey foi importante, uma vez que mantinha interesses, conexões no país norte-americano onde também haveria de viver.

Sobre J. E. K. Aggrey, que o jovem professor Nkrumah, aos 17 anos, encontrou por intermédio de um diretor da escola, sendo Aggrey o então vice-diretor da mesma escola, o mais tarde o pai de independência Afrikana relata:

“para mim, ele parecia o homem mais destacável que eu tinha conhecido na vida até então. Eu tinha o afeto mais profundo por ele. Ele tinha uma vitalidade tão intensa e um entusiasmo, e a risada dele era a mais contagiosa que parecia vir diretamente do coração e, além disso, era um grande orador. Foi através dele que meu nacionalismo despertou.”

Tratava-se, aqui, de um nacionalismo pan-Afrikano, pois, para Nkrumah o horizonte político era da independência Afrikana, em termos continentais e entendendo Afrikano como todos os filhos de Áfrika espalhados pelo mundo nas múltiplas diásporas.

Na sua autobiografia, intitulada Ghana, Nkrumah diz ainda que sua admiração por Aggrey e o nível de troca que estabeleceu com seu mentor tiveram influência mais persuasiva na sua decisão de seguir sua formação intelectual e política nos estados unidos. Aggrey acompanhava os debates políticos da Diáspora nos estados unidos à época, ou seja, Aggrey estava por dentro dos debates sobre modelos de educação adequados para os Afrikanos e sua descendência, via, por exemplo, o trabalho Booker T. Washington que inspirou a criação de uma escola em moldes similares em Áfrika pelo próprio Aggrey. O Mentor de Nkrumah acompanhava também o debate entre Garvey e Dubois, os debates sobre os projetos e programas pela unidade preta em plano internacional.

No curso de sua formação nos estados unidos, quando apresentado a todo e qualquer corpo de conhecimento discplinar e acadêmico, fosse teórico-filosófico, conceitual-analítico, filosófico-moral ou político-revolucionário, Kwame Nkrumah confrontava a mesma pergunta teórico-metodológica e pragmática: o que disso serve ao propósito da união e independência dos Afrikanos? Como disse um de seus amigos dos tempos de estudos no país norte-americano, Nkrumah era pique sem tempo para fetichizar o conhecimento ou fetichizar a formação superior, ou seja, era sem tempo para distrações e seduções brancas. Nkrumah dedica algumas páginas de seu livro Consciencismo a essa crítica à relação com o conhecimento, fomentada na academia. Qualquer que fosse a disciplina ou campo de estudos, a sua pergunta orientadora era a mesma : o que disso serve ou não ao propósito de união e independência dos Afrikanos.

Aí está uma das razões que nos permite afirmar que sua ideologia de base era, de fato, a união e independência dos Afrikanos. No curso da sua formação nos estados unidos, Nkrumah buscou se alimentar do ambiente da militância preta e do trabalho organizativo que iniciou por lá. Sua busca intelectual não se dava de forma cartesiana. Não mesmo. Enquanto ainda no país norte-americano, Nkrumah se virava para conseguir o tempo para o estudo de teatro, a dança Asafo, o estudo de tambores tradicionais Akan e línguas Akan, além da prática de esporte. Esses estudos, digamos, culturais e espirituais, serão extremamente importantes para o tipo de política cultural que o Nkrumah chefe de estado vai implementar anos mais tarde em Ghana e na Áfrika, via diplomacia cultural.

Fato importante para formação política do nosso líder Afrikano, raramente mencionado e por muitos desconhecido, é que Kwame Nkrumah foi membro da UNIA (Associação Universal para o Progresso Negro, na sigla em inglês) de Marcus Garvey, da 21a. divisão em nova iorque, onde participava das reuniões. Foi o proprietário de um apartamento onde morou, Sr. Hubert Whiteman, um Afrikano da Diáspora nos estados unidos, que primeiro levou Kwame Nkrumah às reuniões. Das muitas obras em que se aprofundou, as que tiveram impacto decisivo na sua formação político-intelectual foram os escritos e o conjunto da obra de Marcus Mosiah Garvey, como o próprio líder Afrikano mesmo reconheceu nas obras escritas que nos legou. O discurso de autoafirmação, autodeterminação e orgulho raciais de Marcus Garvey reverberaram no espírito de Nkrumah de forma particular, como o próprio líder Afrikano documentou. Para aquela geração de futuros líderes Afrikanos que conheceram Garvey e o trabalho da UNIA, para esses futuros líderes cuja missão seria varrer do Continente os invasores brancos e romper os laços intitucionais entre metrópole europeia e colônias Afrikanas, essas noções de orgulho racial, autoafirmação e autodeterminação raciais eram novidade e, de fato, constituíram um tipo de ethos revolucionário Afrikano entre Diáspora e Continente Afrikano.

É interessante notar em falas e escritos de Nkrumah um certo eco da voz e do pensamento do Honorável Marcus Garvey. Nas suas primeiras reflexões sobre educação e nacionalismo em Áfrika, por exemplo, em um trabalho em que desenvolveu uma crítica ao sistema de educação colonial — hoje vigente — em Áfrika, Nkrumah afirmou que “um conhecimento completo da história preta é indispensável à formação da futura liderança Afrikana, pois um país ou raça sem conhecimento do seu passado é como um navio sem comandante.” Na frase de origem, que havia inspirado Nkrumah, temos de Marcus Garvey que: “um povo sem conhecimento de sua história é como uma árvore sem raízes.”

Ao nos aprofundarmos, de fato, na história cultural e política construída entre Continente Afrikano e Diásporas Afrikanas, muitas das falsas disputas, das “argumentações” baseadas em falsas simetrias (como, por exemplo, jogar sobre as costas do Honorável uma suposta busca por pureza racial), muitas das políticas de sequestro de legados, muitas das políticas de fragmentação política, que favorecem a dominação supremacista branc’a mediante desorganização e desunião pretas, caem por terra — e caem porque não têm sustentação sólida, à luz da história e do nosso legado cultural e político.

Para dar mais um exemplo bem pertinente, à luz da trajetória intelectual de Nkrumah, a acusação ou a crítica dirigida ao povo preto no brasil por brasileiros legítimos ou bastardos, de que estaríamos importando a agenda e os problemas dos movimentos negros nos estados unidos para o movimento negro no brasil. É risível, não é? Diz aí. É risível diante dos fatos aqui narrados. A agenda e o programa de independência formal de nações de Áfrika, implementados a partir da segunda metade do século passado foi, em muitos níveis, gestada fora do continente Afrikano a partir da mentoria e trabalho de filhos da Diáspora Afrikana — Afrikanos nascidos na jamaica, barbados, haiti, estados unidos etc. além de Afrikanos continentais expatriados.

Marcus Garvey foi inspiração decisiva para a formação de um grupo importante, para uma geração de líderes Afrikanos que tocaram a tarefa de criar as condições para a expulsão dos colonizadores do Continente e o início de um longo processo de descolonização. Uma geração ciente de que a independência formal das novas nações Afrikanas via retirada dos invasores branc’os era apenas o início de uma tarefa muito maior de reconstrução das condições de vida digna e plena do Afrikano no Continente e em suas múltiplas Diásporas.

De volta ao Continente Afrikano, tendo antes passado por Londres, onde acabou por decidir concentrar-se no trabalho de organização política juntamente com uma geração de líderes Afrikanos que lá estavam, Nkrumah se lançou ao trabalho da independência da então costa do outro. Seu partido havendo se tornado maioria na nova assembleia legislativa, Kwame Nkrumah pôde, ao deixar a prisão em 1951, assumir a posição de líder do parlamento no novo governo. Quatro meses depois de assumir o parlamento, o que Kwame Nkrumah faz? Junto com Kojo Botsio, Nkrumah parte para os estados unidos. lá, Nkrumah receberia o título honorífico de doutor pela universidade de lincoln. Na ocasião, Nkrumah delineou os princípios e as políticas do seu partido (CPP), negou ser comunista e afirmou o princípio do autogoverno como meio para o progresso socioeconômico de seu povo. Na sequência, Nkrumah reverenciou Marcus Garvey e afirmou que: “nunca houve um período melhor para o movimento “De Volta à Africa” de Marcus Garvey do que aquele.” Acrescentou, “que cientistas, técnicos e professores pretos sigam em grande número para a costa do ouro para ajudar a construir a nova Costa do Ouro, a Nova Ghana — uma Nova Africa”.

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