Resgatando o valor ancestral do silêncio

Akínwálé Òkòtó
9 min readJun 1, 2020

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Tendo passado bastante tempo longe de Ìré, Ògún, então, decidiu para lá seguir em visita ao seu filho. Lá chegou, porém, em um dia de realização de uma cerimônia ritual muito importante para o reino, que exigia que todos guardassem o silêncio. Não era permitido conversa, nem as de canto de boca, sussurros, troca de olhares — nada. Silêncio total e irrestrito. Mas Ògún retornava de uma guerra, tinha portanto sede e fome. Falava, pedia e ninguém lhe respondia. Ògún insistia mas as pessoas não lhe davam ouvidos. A fúria foi lhe consumindo rapidamente. Indignado com o que vivenciava em termos de desprezo, Ògún empunhou seu facão e, um a um, foi lhes cortando a cabeça. Tombou uma leva enorme do povo de Ìré. Com o sangue deles, Ògún se lavou. Estava vingado. Uma vez terminada a cerimônia ritual, e assim suspensa a norma do silêncio, o filho de Ògún, acompanhado de alguns sobreviventes daquele massacre, foi até o Grande Oníré lhe fazer as devidas honrarias e lhe oferecer um banquete. Ògún, então, tomou conhecimento da cerimônia que acabara de ocorrer. O nobre guerreiro se envergonhou. Lamentou profundamente todas as vidas que ali havia ceifado. Cravando seu facão no chão, Ògún fez que a terra se abrisse e para fenda que abaixo dele se desenhou foi tragado. Ali no Ọ̀run, Ògún se tornara Ọ̀rìṣà.

Ògún — técnica mista — arte: Ọmọ Ọba Kẹ́hìndé Òkòtó

Um dos muitos elementos a que esse ìtàn convoca nossa atenção é justamente a relação com os rituais, os preceitos e a disciplina que eles exigem para condução dos cultos aos ancestrais e às forças naturais e de outra ordem que conformam e orientam a vida no seu duplo plano e em suas múltiplas expressões. Algumas das perguntas que podemos daí derivar, extrapolando o plano ritual, é: que tipo de prática pedagógica e de comunicação propicia formar pessoas que sejam dotadas de um autodomínio tal que, mesmo sob o alvo da fúria do guerreiro, não darão um passo atrás com o compromisso assumido com a comunidade? A nossa conduta diária é prova de qual grau de (des)valor que nós consagramos à (nossa própria) palavra? Que lugar, que valor o silêncio tem na sua experiência cotidiana? Pare e pense. Aqui, como aliás para tudo na vida, autodeclaração não serve de régua. É a conduta, e apenas ela, que deve responder. Só ela dá prova de valor.

É preciso, antes de qualquer coisa, como em um exercício de localização, reconhecer que na nossa condição de deslocados cultural e geograficamente, vivenciamos, de um forma ou de outra, um tipo de modo de ser, de se conduzir, que dá prova constante do completo desvalor dispensado à palavra. Da máfia dos cartórios, que mediante uma soma— bastante alta! — em dinheiro, em tese, atesta quem é quem e quem disse o quê por escrito, aos regimes de citação acadêmicos, com sua lógica de registro de propriedade individual e privada sobre a palavra escrita, que é a lógica das autor-idades, até as fofocas, boatarias, e disse-me-disse, que mesmo historicamente resultando em linchamentos e encarceramento de corpos pretos, raramente têm consequência para quem, através de mentiras, despejou tanta sujeira sobre si mesmo e sobre o mundo, o que se comprova, via de regra, nisso tudo é uma relação de desprezo com o que se fala, com a palavra dita. Nesse contexto, é de se esperar que também a relação com o silêncio seja a pior possível. E, de fato, nesse mundo de mentiras e esquecimentos em diversas escalas programados, a todo momento o apelo feito às pessoas é para que se expressem mais e mais. Isso tudo celebrado como um tipo de liberdade, a liberdade de expressão, que como tudo nesse mundo branco e embranquecido, se ergue em cima de morte, e a morte da palavra é uma delas. Pois importa expressar-se apenas por se expressar, lançar ao mundo, mesmo que não tenha cabimento, que não faça sentido nenhum, nem se saiba do que se está falando. Mesmo que seja lixo. Por quê, pra quê? porque sim, porque Eu quis! É dizer pelo simples querer dizer, porque é Minha opinião — como se fosse possível e mesmo desejável tudo reduzir a questão de opinião, como se toda “opinião” devesse, merecesse ganhar o mundo. Como se a palavra lançada no mundo não tivesse efeitos, não tivesse consequência concreta.

Não é preciso muita análise para perceber que estamos falando de uma cultura infantilizante, que incentiva, premia a falta de responsabilidade — afinal, criança não pode responder por si — , mesmo com o que temos de mais fundamental à vida, que são a palavra e o silêncio. A tradição nos ensina que a palavra é força fundamental que pelo som, através da saliva e do hálito, movimenta e faz vibrar forças exteriores, energias, intervindo e produzindo efeitos concretos em si mesmo e no mundo. A palavra é portadora do àṣẹ, do poder de realizar, de concretizar, do poder da criação. Sendo a palavra, ela mesma, àṣẹ, o silêncio é, portanto, seu veículo. É canal do àṣẹ. É até mesmo sua morada. É através do silêncio, no seu interior, que o àṣẹ circula e arregimenta as forças, energias e matérias para realizar mundo(s), que são transitórios. Se, como também nos ensina a tradição, a nossa palavra atesta do nosso próprio valor, do valor que portamos como humano(a)s, sendo ela testemunho do que valemos em matéria de humanidade, o silêncio deverá ser, ele também, do mais alto valor. É virtude essencial para pessoas Africanas.

Nos meus primeiros passos na minha Casa de Axé, uma das experiências que me impactou e me encantou, como que me dando boas-vindas, foi a do silêncio. São muitos os momentos em que o silêncio é imperativo no dia-a-dia de um terreiro. Frequentemente, é preciso se calar. O quanto cada um se atém de fato a essa norma, à lei, indica a medida do nosso respeito pela tradição, pelos mais velhos, pelos ancestrais, assim como vai dar o ritmo do nosso crescimento e aprendizado no àṣẹ. Além de forma de reverência, calar-se é um modo de entrar em um outro registro de atenção, em uma disposição para escuta ampliada pelos múltiplos canais sensoriais e perceptivos de que o nosso corpo é dotado, e isso frequentemente só é possível acessar em silêncio. Trata-se também de um realinhamento desse múltiplo que chamamos de corpo, de maneira a abrir caminho para o autoconhecimento, para o Conhecimento e para o convívio. Assim, o corpo e a comunidade no seu duplo plano se realizam segundo os diversos propósitos e tempos do Àṣẹ. Silêncio é pilar da nossa espiritualidade, da nossa intelectualidade e da nossa corporeidade.

A experiência do silêncio nessa escola que para nós é o terreiro fornece alguns elementos para pensar o dever que temos com a nossa própria (re-)educação, em termos político-culturais. Por exemplo, mais novos não se sentam na mesa dos mais velhos, não participam de suas conversas. Conversarão, sim, mais novos com seus mais velhos em diversos momentos e espaços no devido tempo, mas mesmo aí é preciso saber se portar em relação ao dito e ao não dito, ao que deve dizer e ao que não deve dizer. Diante dos mais velhos, é imperativo silenciar para aprender. Como dizemos na Capoeira, essa outra escola que os ancestrais nos legaram, “quem não senta para aprender, não se levanta para ensinar.” Para aprender, é preciso escutar. É preciso conseguir, como disse Rafa em um lindo texto aqui na nossa revista (https://medium.com/@rafaela/odo-oba-29a199d5f733), enxergar com os ouvidos, pois eles enxergam melhor que os olhos. Sim, é sobre redimensionar e saber jogar com os sentidos. Como a tradição também nos ensina, o aprendizado se dá na vivência, que exige o concurso do tempo e da prática. Como já falado aqui na revista como nas páginas do Òkòtó, sabedoria não é sobre o conhecimento que se acumula, mas sobre realizar condutas que sejam sólidas porque fundamentadas na espiritualidade. Só sabemos aquilo que vivenciamos em longo prazo. Observar e escutar, através dos múltiplos canais de escuta que seu corpo lhe oferece, são práticas fundamentais à pedagogia do terreiro assim como à pedagogia da capoeira. É preciso muito observar antes de pretender se lançar na roda. As formas de participar são muitas e não estão necessariamente abertas a qualquer um. Assim como nem todo mundo serve ao Candomblé, nem todo mundo serve à Capoeira. Essencial é saber chegar. Miúdo, sem afobação e emoção destemperada, pois, como já dito aqui, emoção também é sempre espiritualidade. Em silêncio, em reverência. Na observação e nas escutas atentas, muito se transmite nas vivências do àṣẹ e da mandinga. É preciso saber escutar.

O silêncio é também um instrumento poderoso para fins de defesa e preservação da tradição. Com o propósito de historicamente se proteger, do olhar estrangeiro de brancos ou embranquecidos, os preceitos, os fundamentos e os segredos, de mantê-los fora do alcance das mãos que tudo profanam e mancham nossa memória ancestral, aprendemos diferentes formas de não dizer. É o caso do que também chamamos na Diáspora e no Continente-Mãe de “pôr na palha”. “Pomos o(a)s estrangeiro(a)s na palha” ao fazermos crer que estamos alimentando sua curiosidade desmedida, saciando seu apetite extrativista, respondendo ao seu fetiche por abstração, com as informações por ele(a)s demandadas, quando na verdade o que estamos realmente fazendo é inventando qualquer coisa para distrair e deixar essa gente seguir pra bem longe. Foi graças a esse tipo de disciplina do silêncio que foi possível recriar África na Diáspora e, sobretudo, preservá-la, apesar do tanto de ataques, distorção e profanação sofrido ao longo dos anos. Todo um repertório do “pôr na palha” foi desenvolvido nos terreiros de Candomblé como nas rodas de Capoeira.

Voltando ao ìtàn, uma dimensão do silêncio que ele revela de forma extrema é a do autocontrole, do autodomínio que uma educação de base Africana exige. Mesmo sob risco da própria morte, o povo de Ìré guardou o silêncio. A disciplina do silêncio é também uma disciplina da palavra. Saber calar é essencial ao equilíbrio de qualquer organismo vivo, da comunidade, como do povo. Penso no quanto caminhamos para trás no percurso de uma educação embranquecida, quando, por exemplo, a leitura de qualquer meia dúzia de autore(a)s branco(a)s faz uma pessoa negra emocionada na academia acreditar que está apto a ensinar, debater, palestrar sobre um dado assunto. Sem dúvidas, a empáfia é a primeira forma de expressão que muitas pessoas negras lá aprendem. Outro efeito trágico desse modelo de (des)educação é um tipo de vício de pensamento que reforça a noção de que o simples fato de pertencer a um dado grupo social faz a pessoa crer que isso por si só a credencia a ensinar, discursar sobre determinado assunto que implica aquele dado grupo. É gente preta discursando sobre racismo porque, afinal, é vítima de racismo. É um preto falando de homens pretos porque, na academia, fez algumas leituras sobre relações de gênero ou, simplesmente, porque se crê homem preto. Comparado ao tanto de energia e esforço consagrados àquilo que as instituições brancas nos dão a conhecer, não devotamos, nem de longe, a mesma seriedade e compromisso, não atribuímos a mesma profundidade ao entendimento da condição que é nossa, como filhos e filhas da África traficada para essas terras. Tampouco realizamos um percurso na direção de refazer, concretamente — isso é, botando palavra e corpo — , nossos próprios termos com os quais nos constituímos pretos-homens, pretas-mulheres, mas, como um típico branco(a) mimado(a), decidimos que vamos falar, porque sim. Mesmo que essa fala reproduza um profundo desrespeito pela memória ancestral, pela tradição e pelos corpos que tombam diariamente na margem. Vamos ensinar a respeito, sim, porque ‘Eu isso, Eu aquilo’. Silêncio. Silêncio. Não é por se enquadrar em um perfil social, por supostamente pertencer a um grupo que você precisa se colocar e externar seus pensamentos. É preciso ter o mínimo de discernimento, humildade para se calar para observar, escutar e aprender. Aprender, antes de tudo, o valor e o poder da palavra e do silêncio.

São muitas as chagas, os traumas e as feridas que séculos de genocídio, escravização e racismo nos causaram. Elas gritam no interior de cada um de nós por nossa atenção, sim, é bem verdade. Será preciso reconhecer, tocar e tratar cada uma delas se queremos nos reerguer como Povo Africano. Mas é preciso ouvir para aprender como. Há um tanto de ancestrais e mais velhos fazendo esse trabalho ao longo de incontáveis séculos. Há pessoas mais velhas tocando essa corrida hoje, bem longe dos sofás da Fátima Bernardes, das festas da Vogue e dos holofotes e palanques que as instituições brancas “caridosamente” oferecem. Eles e elas vêm nos falando, reparando, tratando as feridas suas e do nosso povo. Você é capaz de ouvir? Peça àgò. Exerça o autodomínio para calar o grito das suas feridas e chagas. Em silêncio, observe, escute, aprenda. O autocontrole, cujo fundamento é o (auto)respeito, é essencial em garantir que os vários gatilhos que certamente serão acionados não coloquem você na defensiva, em negação, ou na histeria que facilmente encontram validação no repertório racista que sustenta o sistema educacional e de comunicação de uma “sociedade” infantiloide, genocida e suicida. Eis um resgate urgente a fazermos: a disciplina do silêncio/da palavra. Vamos nos reeducar? Já bem o sabemos, a negligência com os vários modos de escuta nos tem saído bem caro em forma de alienação de si mesmo, alienação do mundo a volta e dos segredos que ele contém.

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